MARÇO DE 1993.
Na maternidade, uma enfermeira com rosto anguloso e contornos corporais sulcados levou o bebê ao pai. O recém-nascido aparentava uma paz que nem os monges poderiam explicar. Uma família à moda cristã.
MAIO DE 1998.
O pátio arborizado estava abarrotado de pessoas. Em cima do palco, as crianças uniformizadas apresentavam uma homenagem às mães. Bem ao fundo, o garoto mais alto da turma experimentava uma timidez ininteligível. Ele nunca se sentia confortável com a presença dos familiares. Em seu âmago brotava a semente de uma inferioridade brutal que o afetaria ostensivamente num futuro breve. Era terra fecunda para achaques. Assim, o adiposo menino fazia pernas itálicas para se tornar menos notado. Vãs tentativas.
AGOSTO DE 2004.
A diretora revelou à desinteressada massa de alunos o vencedor pela melhor redação do colégio. A quadra estava adornada por cartazes sofríveis e correntes de garrafas recicladas. Um adolescente oleoso revelou-se ao atender ao chamado da anfitriã senhora. Por se sentir impróprio, o seu rosto ficou ruborizado ao perceber a medalha de latão presa ao pescoço. Um coroamento.
A grande tela. Anne Hathaway. Escuro. Cochichos ao pé do ouvido. Chocolates. Perfume amadeirado. Perfume cítrico. Mãos tímidas. O espaço entre os corpos diminuía a cada ereção instintiva. Enfim o beijo. “Não Posso”. “Eu quero”. “Que gostoso”. Two boys kissing. O pastor não iria gostar. Continuassem exilados e ninguém sairia ferido.
FEVEREIRO DE 2011.
O mundo era só poesia e o jardim central do campus era tão lindo. Tardes na biblioteca ao som do lápis furioso sobre o papel configuravam uma nova etapa.
MARÇO DE 2014.
Belo Horizonte está muito quente e o recente banho parece não fazer efeito. Sentado sobre a cama, observo a gota de suor que desce pelo meu cenho. Meu quarto é, para mim, um autorretrato. As lombadas dos livros e discos formam uma palheta multicolorida à minha frente. Aqui eu posso gritar a incongruência da humanidade que carrego por ser tão singular, heterogêneo, assimétrico, intenso, extremo, grande, pequeno, tímido, desinibido, eufórico, desconfiado, triste, feliz. Uma subjetividade definida por formas e fôrmas.
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